quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Elementos de uma nova agenda: Os bens comuns

Forum Social Mundial: 10 anos depois - Elementos de uma nova agenda: Os bens comuns

As múltiplas crises nos setores de alimentação & desenvolvimento, clima & meio ambiente e finanças retratam uma crise de idéias. Por isso, novas idéias, coerentes e poderosas são urgentemente necessárias. O Fórum Social Mundial mostrou durante cerca de uma década, que essas idéias (e alternativas) são abundantes! Uma delas conseguiu infiltrar-se na agenda do FSM durante o 9 º Fórum Social Mundial 2009, em Belém. Depois de um debate frutífero e aberto em Belém, o manifesto “Reinvidicando os bens comuns” foi lançado. Ele foi pensado como uma espécie de “Chamada Global para uma campanha de mobilização internacional para recuperar, proteger e recriar os bens comuns”. Assim, o FSM abriu “um espaço participativo, que nos permite compartilhar e discutir idéias e iniciativas em relação ao futuro do espaço comum.” O Manifesto está disponível em 8 línguas para receber assinaturas e ser debatido.
Nas páginas seguintes pretendo explicar:
- Primeiramente, porque eu acredito que, com base em fonte literalmente inesgotável de experiências práticas em todo o mundo, os bens comuns estimulam múltiplas respostas para múltiplas crises.- em segundo lugar, porque eu acredito que os bens comuns como paradigma e visão de mundo podem se converter em um conceito de base para uma plataforma estratégica para os movimentos sociais, e para além e- e finalmente, porque o momento certo para os bens comuns chegou.Isso fará com que você compreenda facilmente porque eu estou dentre os que apoiaram o Manifesto desde seu início.
Os bens comuns como um paradigma comum para os movimentos sociais e além
Nós só podemos promover o bem comum como nova narrativa para o século 21 se eles forem identificados como um denominador comum por diferentes movimentos sociais e escolas de pensamento. No meu ponto de vista, a imposição dos bens comuns seria não só possível, mas estrategicamente inteligente. Aqui estão 15 razões por que acredito nisto:
1. Os bens comuns estão em toda parte. Eles determinam nossa qualidade de vida de muitas e importantes maneiras. Estão presentes (embora muitas vezes invisíveis) nas esferas social, natural, cultural e digital. Pense sobre as coisas que usamos para aprender (ler e escrever), as coisas que usamos para nos mover (terra, ar e mar), as coisas que usamos para nos comunicar (idioma, música e código), as coisas que usamos para alimentar e curar (terra, água, remédios), ou as coisas das quais depende nossa reprodução (genes, vida social). Os bens comuns têm a ver com compartilhar e usar todas essas coisas. Eles são uma vívida forma de reprodução das nossas relações sociais - a qualquer momento. Portanto, eles são melhor descritos com um verbo (COMMONING, ou “comunar” em português) ao invés de um substantivo (bens comuns). Os bens comuns são um tipo especial de prática de utilização e produção de conhecimentos e bens materiais, onde o valor de uso é privilegiado sobre o valor de troca.
“Comunar” é uma prática que nos permite tomar nossas vidas em nossas próprias mãos, proteger e ampliar o que é comum a nós ao invés de testemunhar sua clausura e privatização. Os direitos daqueles que “comunam” são independentes da convenção formal e do direito positivo. Nós simplesmente os possuímos sem ter que pedir permissão para ninguém e os compartilhamos com outros. Os bens comuns oferecem um tipo diferenciado de liberdade daquela que provém do mercado. Assim, a boa notícia é que: quando nos concentramos nos bens comuns, nos concentramos em como mudar as coisas a partir da esfera do mercado para a esfera do bem comum, nos concentramos em como mudar a autoridade e a responsabilidade de burocracias estatais para as muitas possibilidades de “governo dos comuns” por seus usuários e nos concentramos em muitas questões e recursos - como os 75% por cento da biomassa do mundo - que ainda não estão mercantilizados. Isto é encorajador.
2. Os bens comuns ligam setores e comunidades, oferecem uma estrutura para a convergência e consolidação dos movimentos. As questões com que temos que lidar se tornaram demasiadamente complexas. A fim de reduzir a complexidade, fragmentamos o que deve permanecer junto. No debate político público há uma divisão em diferentes domínios do conhecimento e autoridade. Há aqueles que discutem questões relacionadas aos recursos naturais (os “ecos”) e aqueles que discutem as questões culturais & digitais (os “technos”). O resultado são comunidades (excessivamente) especializadas para cada uma das centenas de problemas com que nos confrontamos e muitos elos perdidos. Para a própria diversidade do espaço comum, essa fragmentação vai continuar, em certa medida, mas também contribui para uma perda da nossa capacidade comum de acompanhar o andamento dos processos econômicos, políticos e tecnológicos e as mudanças. Isso diminui a nossa capacidade de reagir às mudanças e cuidadosamente encaminhar propostas que sejam alternativas e coerentes. Os bens comuns podem unificar diferentes movimentos de mudança social, mesmo aqueles que têm uma dinâmica profundamente diferente, porque eles permitem-nos concentrar no que todos os recursos comuns e as pessoas têm em comum e não no que os separa. A água é finita, o conhecimento não é. Atmosfera é global, um parque não é. As idéias crescem quando as dividimos, a terra não. Mas todos são recursos comuns. Portanto nenhum deles pode ser propriedade exclusiva de uma única pessoa. Todos estão ligados a uma comunidade. Todos são mais bem governados se as regras e normas são auto-determinadas ou consideradas altamente legítimas pelo povo que tem que contar com esses recursos.
3. Os bens comuns reformulam o debate sobre propriedade para além da (às vezes inútil) definição de público versus privado. O reinvidicação pela propriedade pública continua a ser importante, mas os Estados serviram realmente como depositários conscienciosos dos bens comuns? Não. Eles realmente protegem os conhecimentos tradicionais, florestas, água e biodiversidade? Não em todo lugar. Há muito mais do que o “público” e o “privado”. Um recurso comum pode ser possuído por um curto espaço de tempo (para reproduzir os nossos meios de subsistência), mas não podemos fazer com ele o que queremos. -+ A propriedade permite. E a propriedade permite o abuso e a mercantilização, a rentabilização máxima e a “externalização” dos custos sobre os bens comuns - um processo em curso no final do qual todos nós estaremos em pior situação. Mesmo os mais ricos entre nós, estimulados a fugir para condomínios fechados.
4. A perspectiva dos bens comuns não é uma forma digital de pensar. O seu modo não é binário, 0 - 1, um ou outro. Também não foca nos pontos principais, como um único número de “sucesso”. Nossa busca é por soluções para além de pólos opostos e métricas numéricas de “sucesso”. Não é simplesmente privado versus público, nem a direita versus a esquerda, a cooperação versus a competição, “mão invisível” do mercado contra o planejamento do Estado, dos que são a favor da tecnologia versus os antitecnologia. De uma perspectiva dos bens comuns o foco está no terceiro elemento esquecido. Ele aprofunda a nossa compreensão sobre a propriedade comum e os princípios universais que trabalham para as pessoas e protegem os seus recursos comuns. No setor de bens comuns, priorizamos aprender mais sobre a cooperação do que sobre a competição. Os bens comuns reforçam regras auto-determinadas e tecnologias abertas comumente desenvolvidas e controladas, ao invés de tecnologias proprietárias, que tendem a concentrar o poder dentro de elites e permitem que elas nos controlem.
5. Falar sobre os bens comuns significa focar na diversidade. Nas palavras do ex-governador Olívio Dutra (Rio Grande do Sul) durante o “Fórum Social Mundial 10 anos depois”: “Eles permitem a unidade dentro da pluralidade e da diversidade”. A definição, mas não a posição defensiva é: “um mundo no qual cabem muitos mundos”. Sem dúvida, um dos pontos fortes desta abordagem reside na idéia de que não há soluções simplistas, padrões institucionais ou nenhuma panacéia “tamanho único”, apenas princípios universais, tais como reciprocidade, cooperação, transparência, respeito à diversidade e outros. Cada comunidade tem que determinar as regras adequadas sobre como acessar, usar e controlar um sistema de recursos comuns baseado nesses princípios. Isto é algo complexo - assim como é a relação entre natureza e sociedade - especialmente quando falamos sobre bens comuns globais. Lá, a “comunidade” é a humanidade inteira, o que se refere à própria necessidade de um novo multilateralismo baseado em uma abordagem livre.
6. Para nos centrarmos na questão dos bens comuns devemos equilibrar três grandes Cs: Cooperação, Comando e Concorrência. Não há cooperação sem competição e vice-versa, mas em uma sociedade baseada nos bens comuns o reconhecimento é adquirido por aqueles que melhor desempenham a cooperação e não a competição. O slogan é: Extrapole a cooperação e não a competição. As regras específicas para a cooperação em um sistema de bens comuns variam de configuração para configuração. Ninguém pode comandá-las de cima. Da pesquisa e prática ligadas aos bens comuns aprendemos que por todo o mundo muitos sistemas de governança de bens comuns são autoreguláveis, o que significa que eles estão criando seus próprios sistemas de monitoramento. Ou eles são autoreguláveis e se coordenam em diferentes níveis institucionais. Quanto ao “comando”, o prêmio Nobel Elinor Ostrom aconselha: “É melhor induzir a cooperação com mecanismos institucionais equipados para os ecossistemas locais do que tentar comando à distância.” Ao mesmo tempo, “os sistemas vindos de cima” - governos, leis, organismos internacionais - podem ser extremamente importantes para o empoderamento e facilitação dos bens comuns. Mas para fazer isso, eles precisam de uma perspectiva de bens comuns inscrita nas suas lógicas e políticas arquitetônicas.
7. Os bens comuns não separam a dimensão ecológica da social como um foco tipo “Green New Deal” faz. Até certo ponto, pode ser útil tornar visível o “valor econômico” dos recursos naturais e certamente é necessário internalizar os custos ecológicos de produção em todo o processo produtivo. Mas isso não é suficiente. Tal enfoque não aborda a dimensão social do problema e tende a aprofundar as estruturas tendenciosas de mercado, ligando as soluções ao acesso ao dinheiro. Então, aquele que tem pode pagar a internalização do custo. Aquele que não tem está em maus lençóis. Ao invés disso, as dimensões ecológica e social encontram uma explicação comum nos bens comuns. Não existe solução baseada em uma perspectiva de bens comuns onde aqueles que não têm, estão em situação pior.
8. O conceito de bens comuns integra diferentes visões de mundo: existem atrativos para o pensamento socialista (por exemplo, a posse comum), para os anarquistas (a abordagem auto-organizacional), para o pensamento conservador (valorizando a proteção da criação), obviamente, para as idéias comunitárias e cosmopolitas (abordagem da diversidade integral) e até mesmo para os liberais (distância da responsabilidade do Estado e o respeito pelos interesses e motivações individuais em aderir a uma comunidade ou um projeto). Mas é claro que os bens comuns não podem ser um programa de partido político único. Essa é a sua força e é por isso que atores políticos da corrente principal muitas vezes não compreendem os bens comuns e até mesmo tentam cooptá-los. Se realmente desejamos um discurso coerente sobre os bens comuns (ver 9), eles não serão bem sucedidos.
9. O valor de referência para a integração de diferentes idéias políticas dentro de um paradigma de bens comuns é clara e tem três objetivos: (a) uso sustentável e respeitoso dos recursos (social, natural e cultural incluindo o digital), o que significa: sem o uso excessivo ou subutilização de recursos comuns (b) a partilha equitativa dos recursos comuns, bem como participação em todos os processos decisórios sobre o acesso, uso e controle desses recursos e (c) o livre desenvolvimento da criatividade e da individualidade das pessoas, sem sacrificar o interesse coletivo.
10. Os bens comuns não têm um, mas muitos centros. Suas estruturas de governança são descentralizadas e variadas também. Em outras palavras: é característico para os bens comuns ser policêntrico, o que defende uma abordagem profundamente democratizante, tanto politicamente (princípios da descentralização, subsidiariedade e soberania do povo e da tomada de decisão) e economicamente (o “modo de produção dos comuns” nos faz menos dependentes do dinheiro e do mercado).
11. Os bens comuns reforçam a crença essencial sobre seres humanos e comportamento. Não somos apenas, nem principalmente o “homo oeconomicus” que nos fizeram crer ser. Somos muito mais do que criaturas egoístas atrás dos nossos próprios interesses. Precisamos e gostamos de estar envolvidos em uma rede social. “Os bens comuns são a teia da vida”, afirma Vandana Shiva. Gostamos de contribuir, cuidar e compartilhar. Os bens comuns reforçam a confiança no potencial criativo das pessoas e na idéia de interrelacionalidade, o que significa: “Eu preciso dos outros e os outros precisam de mim.” Eles honram a nossa liberdade de contribuir e partilhar. Este é um tipo de liberdade diferente da liberdade em que o mercado está baseado. Quanto mais contribuirmos, maior será o nosso acesso às coisas. Mas note: não é simplesmente “acesso a tudo de graça”.
12. Os bens comuns oferecem ferramentas de análise que surgem a partir de categorias diferentes daquelas do capitalismo e, portanto, o conceito contribui para “descolonizar nosso pensamento”. (Grzybowski) Aqueles que “comunam” redefinem a “eficiência”. Eles perguntam como cooperar “eficientemente” e como incentivar e capacitar as pessoas para também fazê-lo? Eles reivindicam direitos de uso (de curto prazo) para reproduzir seus meios de subsistência, em vez da propriedade ilimitada. Eles honram as formas tradicionais de proteger os bens comuns, bem como os sistemas de conhecimento tradicionais. Em suma: os bens comuns jogam nova luz sobre muitos dos antigos processos regulatórios políticos e jurídicos. Faz uma grande diferença o fato de eu ver o ambiente como um bem comum ou como uma mercadoria para ser comercializada. Faz diferença se a água é entendida como um bem comum, o que significa intimamente ligada às necessidades das comunidades, ou não. Ou considere as sementes; conceber a diversidade das sementes como algo livre significa: autodeterminação da colheita e segurança alimentar. Se a sociedade reconhecesse a diversidade regional de sementes como um bem comum, o Estado colocaria todos os recursos disponíveis para produção independente e orgânica de sementes e para proteger os pequenos agricultores para que estes continuem sua forma tradicional de desenvolvimento de sementes ao invés de desperdiçar o dinheiro dos contribuintes com manipulação genética e engenharia de sementes.
13. No setor de bens comuns, há uma grande diversidade e quantidade de atores. Ao longo dos últimos anos, o interesse internacional no paradigma dos bens comuns se acelerou. Várias organizações e cidadãos têm agora significativos círculos transnacionais (Creative Commons, Wikipedia, Software Livre e Movimento da Cultura Livre, plataformas de partilha, organizações antimineração, alianças que trabalham para uma abordagem de Bem Viver, movimentos em todo o mundo para uma agricultura sustentável, Água como Bem Comum - Water Commons, hortas comunitárias, projetos para a comunicação e informação do cidadão e muitos outros). Na verdade, é um crescimento espontâneo e explosivo de diversas iniciativas comuns. Desde que Elinor Ostrom ganhou o Prêmio Nobel de Economia (Outubro 2009), muitas universidades têm redescoberto o interesse acadêmico pelos bens comuns.
14. Os bens comuns são um modo alternativo de produção. Os problemas com que nos confrontamos não são problemas de disponibilidade de recursos. São problemas que surgem a partir do modo de produção atual. Felizmente, em algumas áreas, estamos testemunhando uma mudança do modo de produção capitalista (baseada na propriedade, comando, troca de valor através de dinheiro, exploração de recursos e do trabalho, dependentes do crescimento e com o lucro como único objetivo) em um modo livre de produção (baseado na posse, contribuição, partilha, auto-interesse e iniciativa, onde o PIB é um indicador insignificante e o objetivo é uma vida boa 15. O discurso sobre os bens comuns é um discurso sobre mudança cultural. Não se trata de uma abordagem meramente tecnológica ou institucional. Em vez disso, ela oferece uma nova estrutura o pensar e agir político e pessoal.
Por que agora? Porque o momento é propício para os bens comuns.
1. Dado o momento histórico de mudança, os bens comuns estão atualmente sendo redescobertos em muitos contextos. O Mercado e o Estado (sozinhos) falharam tanto na proteção dos recursos comuns na satisfação das necessidades dos povos. Na verdade, o fundamentalismo do mercado livre que prevalece neste momento está ameaçado. Seu sistema de análise econômica, políticas públicas e visão de mundo estão perdendo o seu valor explicativo, para não mencionar o apoio do público. Mais e mais pessoas percebem que não é por causa do mercado que nós apreciamos a biodiversidade, a diversidade cultural e as redes sociais!
2. As novas tecnologias permitem novas formas de cooperação e a produção descentralizada do que, até agora, têm sido tecnologias essenciais monopolizadas da era industrial. Hoje, podemos deslocar até a energia ou a produção de eletricidade para os bens comuns sociais (estações de energia solar cidadã, estações de energia caseiras). Podemos decidir quais são as notícias e informações úteis para a comunidade e reproduzi-las com “a maior máquina de copiar” que já existiu: a internet. A grande revolução em curso na produção permite uma mudança de regras. Esta é uma grande ameaça para os monopólios.
3. Os processos em curso colocam o indivíduo em posição de participar de um contexto mais amplo. A perspectiva moderna dos bens comuns não é dirigida para o passado. A perspectiva não é de mera relocalização. O horizonte aponta para a cooperação local, descentralizada e horizontal em redes distribuídas de modo que as pessoas possam se capacitar para criar coisas juntas, disponíveis para elas e outras - se quiserem. O objetivo é ampliar o setor de bens comuns e da produção baseada em bens comuns tanto quanto possível e depender cada vez menos do mercado. Isso só será possível se o novo modo de produção for capaz de resolver até mesmo problemas complexos, se for capaz de produzir artefatos coletivamente que mesmo grandes empresas teriam dificuldades para preparar logisticamente, financeiramente e conceitualmente. E pronto! Basta pensar sobre a Wikipedia ou um carro que aceita qualquer tipo de energia. Talvez tivéssemos sido capazes de desenvolver VIPs (veículos de transporte individual), com base em 100% de materiais recicláveis, que consomem apenas um litro/100km se as empresas não tivessem restringido as tecnologias e controlado o mercado. Em um mundo onde o modo de produção baseado em bens comuns é geral, não há mais centro e periferia.
4. Há novas formas jurídicas para proteger os direitos de uso coletivo e livre e/ou acesso equitativo aos bens comuns: a Licença Pública Geral (GPL), as licenças Share Alike, modelos de apropriação dos recursos naturais, com um mecanismo embutido para proteger contra a especulação e evitar a superexploração, fundos de ações de um único recurso comum, os sistemas acequia e Johads de gestão da água no México e Índia ou o Allemansrätten (direitos de cada pessoa) em países da Europa Setentrional. Estas são ferramentas poderosas sobre as quais temos muito que aprender e desenvolver. É uma área onde precisamos de uma boa dose de pensamento jurídico criativo e inovação e precisamos de respeito pela grande variedade de regras formais e informais para proteger os bens comuns em todo o mundo.
5. E por último, mas não menos importante: uma vez que você inicia sua caminhada no mundo dos bens comuns, você descobre coisas novas e impressionantes. Você se conecta com centenas de comunidades dinâmicas. Você tem insights inesperados, descobre projetos estimulantes e idéias e multiplica suas redes. É energizante. Você sabia que existe um projeto chamado Open Cola? Ou que o maior lago da Nova Zelândia, o Lago Taupo, está cheio de trutas? Na região de Taupo muito turística, há uma pressão muito grande sobre os recursos, mas a população continua a desfrutar da truta do lago, porque os neozelandeses seguem uma regra simples: Pesque o que você precisa para comer (para fazer isso, você obtém uma licença de pesca das autoridades locais), mas não venda. Assim, você não vai encontrar nenhuma truta nos menus das centenas de restaurantes na região. Lembre-se: Os bens comuns não estão à venda. Ou será que você sabe algo sobre a biologia de código aberto e medicina participativa? Você já ouviu falar sobre os inúmeros bancos de sementes locais - especialmente no sul - e os incríveis tesouros que eles desenvolvem para nós? Você sabe em que ponto se encontra a luta do crescente movimento internacional de acesso aberto da publicação acadêmica em seu esforço para ter certeza de que teremos livre acesso ao que foi publicamente financiado para a produção do conhecimento? Você sabe algo sobre o intercultural e os movimentos para as hortas comunitárias ou sobre os regimes utilizados pelos pescadores de lagosta do Maine/E.U.A. para evitar o excesso de pesca da lagosta? E a participação dos bens comuns nas crises, quando centenas de voluntários contribuem com seu conhecimento e coletam informações utilizando modernas tecnologias da informação para o apoio à ajuda humanitária no Haiti pós-terremoto, por exemplo?
Os bens comuns trazem o entusiasmo de volta para os debates políticos. Os jovens são todo ouvidos quando eles aprendem sobre produção coletiva de um para um, porque é isso que eles fazem. Os “ecos” são todo ouvidos quando eles descobrem o princípio de copyleft, que permite a reprodução viral de software e de conteúdo. Eles aprendem que “este treco complicado de licença” significa a defesa da nossa liberdade de acesso aos conhecimentos e técnicas culturais. É precisamente o que eles dizem no seu campo. Os “technos” se motivam a utilizar suas incríveis habilidades para ajudar a gerir sistemas complexos de recursos naturais. Em outras palavras: os bens comuns ampliam o horizonte e sopram uma brisa fresca no pensamento e prática coletivos não-dogmáticos e dinâmicos.
Os bens comuns são um conceito poderoso, autocapacitante e empoderante para a constante recriação de uma vida digna. É o que precisamos para construir um movimento diversificado e irresistível, com base em um pensamento político, coerente e conceitual.
Silke Helfrich
Tradução Adriana Guimarães

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Reunião de avaliação do 4° Seminário

Agendem-se:

Data: 02 de março (terça-feira)
Hora: 14h
Local: SACIS - Pref. Municipal de São Leopoldo - Rua São Joaquim, 600 - São Leopoldo

Sua participação será bem importante! Pedimos para que todos levem consigo suas avaliações e de sua instituição para que possamos construir um bom Raio X do vivido para planejar qualificadamente a continuidade do processo.
Lembramos que esta continuidade foi traçada brevemente ao final do Seminário e que tem um instrumento potente para isso que é a Agenda...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Seminário sobre Políticas Sociais lota Anfiteatro Padre Werner da UNISINOS.

FSM 2010- Porto Alegre/RS

Seminário sobre Políticas Sociais lota Anfiteatro Padre Werner da UNISINOS.

São Leopoldo/RS - Frente a um anfiteatro lotado, o professor titular da Universidade de Coimbra Boaventura de Souza Santos e a senadora Marina Silva (PV), falaram sobre políticas sociais, direitos de indígenas e afrodescendentes e desmatamento. Os dois participaram ontem no segundo painel do 4º Seminário de Políticas Sociais: O Papel Público das Políticas na Garantia dos Direitos Sociais, dentro da programação do Fórum Social Mundial (FSM), que ocorreu no Anfiteatro Padre Werner, na UNISINOS.

Silvio Caccia Bava, representante do Instituto Polis e do jornal Le Monde Diplomatique; e Hélios Puig Gonzáles, da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, foram os painelistas na primeira parte do seminário, em mesa coordenada por Salvatore Santagada representando o SINSOCIÓLOGOS/RS.

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, Boaventura de Souza Santos começou falando sobre o contexto da América do Sul na última década. ‘‘Este continente teve uma década auspiciosa, com exceção da Colômbia, que pode via a ser um Israel da América do Sul’’ e arriscou previsões, embora dissesse que sociólogos não são bons no assunto. ‘‘Suspeito que a próxima década não seja tão brilhante e auspiciosa. Temos um novo governo de direita no Chile, não sabemos o que acontecerá com a Venezuela, há o apoio ao golpe de Estado nas Honduras. Esta década será mais exigente e tornará o Fórum Social Mundial ainda mais relevante do que foi até agora’’, salientou.

Ele enfatizou a importância de radicalizar a democracia não somente na política, mas também nas famílias, nas fábricas, na rua, nas empresas. Em todos os lugares. “Para que isso seja possível, não podemos ter medo e desistir. Temos que ir até o fim para obtermos algum resultado”.

Ao ser anunciada, Marina foi recebida de pé pelo público, sob fortes aplausos. A ex-ministra do Meio Ambiente era uma das presenças mais esperadas desta edição do Fórum. Boaventura, igualmente, garantiu o quorum, que lotou não somente o anfiteatro (720 lugares), mas outros dois espaços fora dele, onde foram colocadas telas extras. Até mesmo o criador do FSM, Oded Grajew, compareceu para prestigiar o evento.

O Fórum Social Mundial desafiado por novas perspectivas. Entrevista Especial com Boaventura de Sousa Santos

Entramos no milênio com um sentimento contraditório, disse o sociólogo Boaventura de Sousa Santos para a platéia que o assistia na tarde do dia 27-1-2010, no Anfiteatro Padre Werner, no 4º Seminário de Políticas Sociais, parte da programação do Fórum Social Mundial. Sem otimismo, ele assegurou que a próxima década será menos fácil para as forças progressistas e os movimentos sociais. “Venho do Equador e vejo tensões muito fortes entre o governo e o movimento indígena, justamente num país cuja a Constituição tem uma enorme influência indígena. Isto também é um mau sinal”.
Por outro lado, o sociólogo apontou uma novidade no continente latino-americano: o resgate do conceito de suma causa, presente na tradição indígena, ou seja, a necessidade de pensar a natureza, a harmonia cósmica, o bem-estar social. Essa concessão holística “exclui a acumulação e o lucro como fins em si mesmo e (...) é baseada na simplicidade, nos valores comunitários (...), uma maneira completamente diferente de entender a economia”.  Esse resgate está relacionado a um processo de descolonização da América Latina. “Só agora muitos países estão se dando conta disso, devido a ação dos novos protagonistas indígenas e afro-descendentes”.
Depois da apresentação de sua conferência, Boaventura conversou com a IHU On-Line e falou sobre o fracasso que Copenhague representou para os movimentos sociais e mencionou suas expectativas em relação ao futuro do Fórum Social Mundial nos próximos anos.

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Entre sua vasta produção bibliográfica, citamos Epistemologias do sul (Coimbra: Edições Almedina, 2009); A universidade no século XXI. Para uma universidade nova (Coimbra: Edições Almedina, 2008); A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Porto: Afrontamento, 2007); Para uma revolução democrática da justiça (São Paulo: Cortez Editora, 2007).

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Copenhague foi um fracasso, uma derrota para os movimentos sociais?
Boaventura de Sousa Santos – De alguma maneira foi um fracasso, sim. Não conseguimos impor em Copenhague uma visão coerente, alternativa àquela que estava sendo posta pelos países desenvolvidos, com alguma conivência dos países em desenvolvimento. Isso resultava do fato de que em Bali, numa conferência preparatória, os EUA declararam que não estavam preparados para impor metas para a redução do CO2. Quando os EUA disseram isso, todos os países já sabiam que não iriam se envolver em grandes metas vinculativas, porque os americanos ficariam de fora. Aliás, os EUA têm um hábito extraordinário de não participar das convenções internacionais. Portanto, Copenhague já era um fracasso anunciado. O que houve, obviamente, foi uma tentativa, e essa com êxito, de que não se assinassem documentos que mostrassem a hipocrisia total de todo o sistema. Mais vale aceitar um fracasso e ver se no México, ainda este ano, é possível fazer alguns avanços.
 
 "De alguma maneira foi um fracasso, sim. Não conseguimos impor em Copenhague uma visão coerente, alternativa àquela que estava sendo posta pelos países desenvolvidos"
 
É evidente que os países ricos e desenvolvidos têm que ter a sua cota de responsabilidade. Em seu discurso no Gigantinho, o presidente Lula disse que quem polui há 200 anos não pode ter as mesmas responsabilidades daqueles que poluem a cinco ou dez anos. Isso é perfeitamente justo, mas muito difícil de ser compreendido pelos governantes da Europa ou dos EUA. Portanto, esse é um processo lento, até porque temos outros gigantes emergentes como a China, a qual, usando este argumento, não está disposta a desenvolver uma economia de baixo carbono. Por outro lado, temos a Coréia do Sul, um exemplo de país capitalista desenvolvido que está neste momento fazendo uma conversão notável para a economia do baixo carbono, anunciando novos modelos de produção, que podem ter algum futuro dentro do modelo capitalista.

IHU On-Line – Qual será o papel político e social do Fórum Social Mundial nos próximos dez anos? Que futuro o senhor vislumbra para o encontro?
Boaventura de Sousa Santos – O Fórum Social Mundial, que teve um impacto notável nesta última década, vai ser cada vez mais relevante se forem tomadas algumas medidas. A primeira, no meu entender, é que ele deve ser verdadeiramente mundial. Da perspectiva sociológica ou social-política, o Fórum foi, sobretudo, latino-americano. Foi na América Latina que ele conquistou a imaginação dos movimentos sociais, dos lideres políticos que aqui vieram certos de que estavam diante de um evento importante. Não conseguimos fazer isso na Europa, nem na Ásia, nem na África, apesar de termos realizados fóruns sociais nesses continentes.
Penso que deve haver mudanças e o fato de o próximo Fórum Social Mundial ser em Dakar, pode já anunciar a possibilidade de algo mais forte neste sentido. Em segundo lugar, penso que o Fórum Social Mundial tem que se preparar para, em áreas consensuais, poder apresentar publicamente e internacionalmente posições do Fórum Social Mundial. Teria sido bom se, por exemplo, em Copenhague nós tivéssemos tido a posição do Fórum Social Mundial. Estiveram lá algumas organizações que fazem parte do Fórum, só que elas atuaram como organizações e não como organizações do Fórum Social Mundial. Mas aí é preciso haver alguma evolução. Em terceiro lugar, o Fórum deve tentar promover algumas ações coletivas de formação como, por exemplo, a minha proposta da universidade popular dos movimentos sociais, ou outras sugestões de articulação de ações coletivas. Hoje, o Fórum é a melhor opção para se tentar uma nova articulação entre partidos e movimentos. Ele nasceu num período de crise dos partidos com o objetivo de mostrar que há outras formas de representação. O interessante é que hoje temos partidos novos no continente que querem ver como é possível ter uma relação diferente com os movimentos sociais, articulando-se com eles, respeitando sua autonomia, mas trabalhando juntos para políticas progressistas.
 
 "Teria sido bom se, por exemplo, em Copenhague nós tivéssemos tido a posição do Fórum Social Mundial"

IHU On-Line
– Por que a próxima década será menos fácil para os movimentos sociais e forças progressistas?
Boaventura de Sousa Santos – Os avanços nunca são irreversíveis e os retrocessos nunca são finais. O que digo é que a conjuntura política internacional dá alguns sinais que podem ser positivos para este continente, mas também sinaliza aspectos que podem ser negativos. O mais negativo de todos é o fato de os EUA terem se virado para a América Latina. Quando isso acontece geralmente temos más notícias, sobretudo quando o país não decide abandonar a sua obsessão com os recursos naturais e a sua segurança. Os EUA são hoje um país que está cada vez mais isolado. Um cidadão europeu viaja por todo o mundo sem precisar de visto para entrar em muitos países. Um cidadão estadunidense, contudo, precisa de visto, hoje, para entrar em 93 países. É muito difícil um norte-americano conseguir obter um visto para entrar no Brasil, porque é muito complicado para um brasileiro obter o visto para entrar nos EUA.
Essa preocupação com a segurança fez com que tenhamos o problema do Haiti. As informações que temos mostram que os EUA transformaram o Haiti numa zona de ocupação e, sobretudo, numa zona segura, para não se repetir o que aconteceu na Somália. Com base nisso, não deram a ajuda humanitária que deveriam dar. Esses são maus sinais. Por outro lado, nem sempre os governos progressistas souberam manter a ligação com a sociedade civil e os movimentos sociais. Venho do Equador e vejo tensões muito fortes entre o governo e o movimento indígena, justamente num país cuja Constituição tem uma enorme influência indígena. Isto também é um mau sinal. Vejo que há sinais também de separação entre o presidente Chávez e os movimentos sociais. Não sabemos o que vai acontecer nas próximas eleições na Venezuela: golpe de Estado? Não imagino. Mas, como digo, as previsões não pertencem aos sociólogos.
 
 "Por outro lado, os governos progressistas, além de não terem criado condições de ter uma relação com a sociedade civil melhor, também não tiveram políticas inovadoras no modelo econômico"
 
Por outro lado, os governos progressistas, além de não terem criado condições de ter uma relação com a sociedade civil melhor, também não tiveram políticas inovadoras no modelo econômico. Ainda hoje, como eu disse, não temos nenhuma política nova a não ser essa do Equador, que, em sua Constituição valoriza a filosofia ancestral do sumak kawsay (bem viver) e os direitos da Pachamama. Essa é uma das poucas formas que pode ser apontada para outro modelo de desenvolvimento. Portanto, muitas das políticas adotadas pela esquerda podem ser apropriadas por governos de direita, sem problema nenhum. De todo modo, esses são indicativos de preocupação.

IHU On-Line – Qual vai ser o papel do Fórum Social Mundial nesse contexto de dificuldade?
Boaventura de Sousa Santos – Penso que o Fórum Social Mundial vai ser muito importante para permitir uma solidariedade internacional e continental para os fatos que ainda podem acontecer. Penso que nenhuma tentativa de desestabilizar os países pode ser feita. Podem dizer que em Honduras não houve uma grande solidariedade. Mas, lá, os movimentos sociais da América Latina foram paralisados por uma atitude inicial dos EUA, os quais achavam que não era necessária a organização dos movimentos sociais, porque o país iria respeitar Zelaya, presidente eleito, e como tal não aceitaria o golpe de Estado. Portanto, quando os cidadãos de Honduras sentiram necessidade de fazer manifestações, o fizeram sozinhos. De fato não houve uma grande solidariedade continental. Penso que o Fórum Social Mundial tem de se preparar para ser mais ativo nas capacidades organizativas da solidariedade continental.
O Fórum também pode ter a função de participar de debates que são novos no continente e que tem a ver com duas questões: justiça ambiental e justiça intercultural. É preciso apresentar-se diante dos dilemas ambientais e da questão indígena e afro-descendente, porque os políticos são muito produtivistas, não tem uma consciência ambiental.
 
 "Ainda hoje, como eu disse, não temos nenhuma política nova a não ser essa do Equador, que, em sua Constituição valoriza a filosofia ancestral do sumak kawsay (bem viver) e os direitos da Pachamama. Essa é uma das poucas formas que pode ser apontada para outro modelo de desenvolvimento"
 
O Fórum Social Mundial, na área ambiental, da interculturalidade e da democracia participativa e comunitária, tem um papel muito forte no sentido de dinamizar estas áreas a nível continental e global. Como vamos fazer? Não sabemos muito bem. Evidente que há a lógica do consenso, de que não devemos assumir condições que façam perder este caráter inclusivo do Fórum Social Mundial. Portanto, vamos ver o que o futuro nos reserva.

IHU On-Line – Como o conceito de suma causa pode ser aplicado na conjuntura atual? 
Boaventura de Sousa Santos – O conceito de suma causa, que quer dizer viver bem, apresenta um modelo social e econômico, aliás, essa distinção não faz muito sentido porque ela é uma concepção holística, e como tal envolve movimentos culturais, sociais, econômicos e religiosos, inclusive. Realmente é uma concepção que não se assenta na ideia do progresso no sentido ocidental, mas na ideia do desenvolvimento das pessoas, do florescimento dos indivíduos e da comunidade, ou seja, é um conceito que não se baseia num princípio individualista de pessoa, mas no conceito coletivo: a pessoa e sua sociedade. Não exclui, obviamente, as relações mercantis que sempre estiveram nas comunidades indígenas. Entretanto, exclui a acumulação e o lucro como fins em si mesmo e, portanto, é uma economia que mesmo quando tem algum elemento que pudesse ser semelhante a uma economia capitalista, centra-se sempre na unidade familiar. É uma concessão que parte da família e, normalmente quando a família não a apóia, ela desaparece. Portanto, é outro tipo de concepção, de construção de vida e de sociedade, baseada na simplicidade, nos valores comunitários. É uma maneira completamente diferente de entender a economia daquela que nós conhecemos como convencional.

IHU On-Line – O senhor alerta para a necessidade de assegurarmos todos os direitos conquistados até o momento. Como mantê-los e ampliá-los num período em que o diálogo entre movimentos sociais e os representantes do neoliberalismo é tão estreito?
Boaventura de Sousa Santos – Penso que uma luta não exclui a outra. Não podemos “embandeirar em arco”, isto é, ficarmos todos triunfalistas acerca das conquistas que temos como se elas fossem irreversíveis. Conquistou-se a democracia e isso é muito importante, mas não é irreversível. Temos que aprofundá-la e radicalizá-la. A única maneira para que isso ocorra é avançar para as novas conquistas, mas ter entendimento de que aquelas que já temos também não são perdidas. Não faz sentido consolidarmos, para dar um exemplo, a Conferência Nacional, onde os movimentos sociais e o Estado se juntam e, portanto, isso é muito importante. Essa é uma política do governo brasileiro, que cria conferências nacionais de articulação com a sociedade civil organizada. Isso não impede que se lute contra a criminalização dos movimentos sociais e, nomeadamente, do MST. Portanto, aqui está a defesa daquilo que temos: a legalidade dos movimentos sociais e, por outro lado, o avanço para outras lutas e um diálogo constante.

IHU On-Line – Como os três modos de democracia (representativa, participativa e comunitária) são capazes de radicalizar a democracia? A experiência dos povos indígenas é um exemplo a ser seguido nesse sentido?
Boaventura de Sousa Santos – Precisamente porque são formas diferentes de trabalhos democráticos, onde uma democracia indígena não exclui, inclusive, a democracia representativa e participativa. Ou seja, os povos indígenas, que, no âmbito de sua comunidade, em formas de liberação democrática por consenso, tomam decisões locais, são também aqueles que irão votar nas eleições nacionais. Então, articula a democracia comunitária com a democracia representativa. Não temos até agora formas ricas e criativas de democracia participativa além da nacional. Nós temos essas formas de democracia comunitária, participativa no âmbito municipal. Já tivemos no Rio Grande do Sul uma experiência de democracia participativa a nível estadual, com o Orçamento Participativo.
 
 "Não temos até agora formas ricas e criativas de democracia participativa além da nacional"
 
IHU On-Line – O senhor diz que o Estado é o novo movimento social. Pode nos explicar essa ideia?
Boaventura de Sousa Santos – Fundamentalmente é uma metáfora que uso para distinguir os velhos movimentos sociais, os sindicatos, dos novos movimentos que surgiram como o das mulheres, os ecológicos e dos direitos humanos. Digo que agora há um novíssimo movimento social que é o próprio Estado. Vimos os movimentos sempre fora do Estado, e esquecemos um pouco dele. Realmente o Estado, entregue a si mesmo e a sua lógica, é capturado pela burocracia e pelos interesses econômicos dominantes. Portanto, é preciso que os movimentos sociais saibam que o Estado é um recurso importante e, neste país, temos uma boa lição: o MST, que trabalha fora do Estado e dentro dele. Mantém a sua autonomia, faz as suas ocupações, mas ao mesmo tempo seus assentamentos recebem financiamento do Estado, negociam com ele uma reforma agrária.
Tem que ser assim, complexo, porque o Estado é hoje uma relação social contraditória. Nós estamos numa altura em que apontamos o Estado como capitalista e como tal não podemos intervir nas suas lutas. Há hoje grupos sociais, os anarquistas, sobretudo, que continuam a pensar assim. Penso que não é isso que está em jogo. O Estado é uma relação contraditória e uma relação que pode ser apropriada pelas classes populares, se não totalmente, pelo menos, parcialmente. É isso que está ocorrendo no continente latino-americano.